Manhã de um sábado de 2010 em Campinas. Sócrates tinha combinado de nos encontrar. O "nós" aqui é o de menos. Continuação de uma conversa sobre esporte e cidadania. E, ainda, previdência complementar pra jogadores de futebol que, numa profissão tão curta, não raro se veem na miséria. Não é o caso do Magrão, ídolo nacional, médico de profissão, articulista de jornais e revistas. É pura preocupação de quem já socorreu diversos companheiros de geração em apuros.
Socrates está em Ribeirão, a mais de 200km. Vamos a Arcadas, distrito de Amparo, 50km a frente. Bar do Gil. Não tem endereço. Mistura de armazém de secos e molhados com a melhor casquinha de siri e pratos de frutos do mar que se conhece. Escondido na vilinha. Com coreto. Para poucos.
Ele diz que encontra. Vem de carro, sozinho. "Tem GPS?" Ri de nós e diz que nunca precisou de um pra encontrar um boteco. Duvidamos. Três horas depois chega no bar, pra nossa surpresa. Doutor Sócrates, o brasileiro, pára a rua, o armazem, o bairro, a nossa e as outras mesas. Uma lenda. Eu não paro de pensar no meu pai. Corintiano fanático. Meu irmão tá junto e emocionado.
É o cara: da seleção de 82, da democracia corintiana, das Diretas Já!
O papo passa pelo programa de aposentadoria de atletas, a formação de jovens pras Olimpíadas, o combate ao racismo, a desigualdade social...Pois é, tudo isso. Não fazia nada pela metade, o Magrão. Tinha causa, lado, caráter, integridade e coerência. E era voluntário, sempre.
Fim do oficial - ele dirigiu 250 km de carro, sozinho! - é a vez do papo furado entre amigos forjados numa só luta, que estiveram do mesmo lado sempre, ainda que houvessem demorado a se cruzar. Ele bebe vinho, ri, não se cansa das fotos com as crianças que continuam a chegar. Sua fama atravessa gerações. Cai a noite e nos despedimos.
Personagem coadjuvante nesta história, tive a honra de estar com ele outras vezes. Há dez dias, ouvi que ele falava com meu marido ao telefone. Ficaram amigos. Um alívio saber que se recuperava... Ontem, a notícia.
Fumava, bebia, lutava. Um gauche. "Socrates morreu de tanto viver, que é uma boa forma de morrer", escreveu o jornalista Flávio Gomes.
Meninos, eu vi! Digo eu.
Texto de Geide Miguel